Contos Libertinos

Contos Libertinos 
Marquês de Sade



O marido padre
Conto provençal

Entre a cidade de Menerbe, no condado de Avinhão, e a de Apt, em Provença, há um
pequeno convento de carmelitas isolado, denominado Saint-Hilaire, assentado no cimo de
uma montanha onde até mesmo às cabras é difícil o pasto; esse pequeno sítio é
aproximadamente como a cloaca de todas as comunidades vizinhas aos carmelitas; ali, cada
uma delas relega o que a desonra, de onde não é difícil inferir quão puro deve ser o grupo de
pessoas que freqüenta essa casa.  Bêbados, devassos, sodomitas, jogadores; são esses, mais
ou menos, os nobres integrantes desse grupo, reclusos que, nesse asilo escandaloso, o quanto
podem ofertam a Deus almas que o mundo rejeita.  Perto dali, um ou dois castelos e o burgo
de Menerbe, o qual se acha apenas a uma légua de Saint-Hilaire - eis todo o mundo desses
bons religiosos que, malgrado sua batina e condição, estão, entretanto, longe de encontrar
abertas todas as portas de quantos estão à sua volta.
Havia muito o padre Gabriel, um dos santos desse eremitério, cobiçava certa mulher de
Menerbe, cujo marido, um rematado corno, chamava-se Rodin.  A mulher dele era uma
moreninha, de vinte e oito anos, olhar leviano e nádegas roliças, a qual parecia constituir em
todos os aspectos lauto banquete para um monge.  No que tange ao sr. Rodin, este era homem
bom, aumentando o seu patrimônio sem dizer nada a ninguém: havia sido negociante de
panos, magistrado, e era, pois, o que se poderia chamar um burguês honesto; contudo, não
muito seguro das virtudes de sua cara-metade, era ele sagaz o bastante para saber que o
verdadeiro modo de se opor às enormes protuberâncias que ornam a cabeça de um marido é
dar mostras de não desconfiar de os estar usando; estudara para tornar-se padre, falava latim
como Cícero, e jogava bem amiúde o jogo de damas com o padre Gabriel que, cortejador
astuto e amável, sabia que é preciso adular um pouco o marido de cuja mulher se deseja
possuir.  Era um verdadeiro modelo dos filhos de Elias, esse padre Gabriel: dir-se-ia que toda
a raça humana podia tranqüilamente contar com ele para multiplicar-se; um legítimo fazedor
*
de filhos, espadaúdo, cintura de uma alna , rosto perverso e trigueiro, sobrancelhas como as

de Júpiter, tendo seis pés de altura e aquilo que é a característica principal de um carmelita,
feito, conforme se diz, segundo os moldes dos mais belos jumentos da província.  A que
mulher um libertino assim não haveria de agradar soberbamente?  Desse modo, esse homem
se prestava de maneira extraordinária aos propósitos da sra. Rodin, que estava muito longe de
encontrar tão sublimes qualidades no bom senhor que os pais lhe haviam dado por esposo.  
Conforme já dissemos, o sr. Rodin parecia fazer vistas grossas a tudo, sem ser, por isso,
menos ciumento, nada dizendo, mas ficando por ali, e fazendo isso nas diversas vezes em que
o queriam bem longe.  Entretanto, a ocasião era boa.  A ingênua Rodin simplesmente havia
dito a seu amante que apenas aguardava o momento para corresponder aos desejos que lhe
pareciam fortes demais para que continuasse a opor-lhes resistência, e padre Gabriel, por seu
turno, fizera com que a sra. Rodin percebesse que ele estava pronto a satisfazê-la... Além
disso, num breve momento em que Rodin fora obrigado a sair , Gabriel mostrara à sua
encantadora amante uma dessas coisas que fazem com que uma mulher se decida, por mais
que hesite... só faltava, portanto, a ocasião.
Num dia em que Rodin saiu para almoçar com seu amigo de Saint-Hilaire, com a idéia
de o convidar para uma caçada, e depois de ter esvaziado algumas garrafas de vinho de
Lanerte, Gabriel imaginou encontrar na circunstância o instante propício à realização dos
seus desejos.
                                                           
*
 Antiga medida de comprimento de três palmos. (N. dos T.)



- Oh, por Deus, senhor magistrado, - diz o monge ao amigo - como estou contente de vos
ver hoje!  Não poderíeis ter vindo num momento mais oportuno do que este; ando às voltas
com um caso da maior importância, no qual haveríeis de ser a mim de serventia sem par.
- Do que se trata, padre?
- Conheceis Renoult, de nossa cidade.
- Renoult, o chapeleiro.
- Precisamente.
- E então?
*
- Pois bem, esse patife me deve cem écus , e acabo de saber que ele se acha às portas da

falência; talvez agora, enquanto vos falo, ele já tenha abandonado o Condado... preciso
muitíssimo correr até lá, mas não posso fazê-lo.
- O que vos impede?
- Minha missa, por Deus!  A missa que devo celebrar; antes a missa fosse para o diabo, e
os cem écus voltassem para o meu bolso.
- Não compreendo: não vos podem fazer um favor? 
- Oh, na verdade sim, um favor!  Somos três aqui; se não celebrarmos todos os dias três
missas, o superior, que nunca as celebra, nos denunciaria à Roma; mas existe um meio de me
ajudardes, meu caro; vede se podeis fazê-lo; só depende de vós.
- Por Deus!  De bom grado!  Do que se trata?
- Estou sozinho aqui com o sacristão; as duas primeiras missas foram celebradas, nossos
monges já saíram, ninguém suspeitará do ardil; os fiéis serão poucos, alguns camponeses, e
quando muito, talvez, essa senhorazinha tão devota que mora no castelo de... a meia légua
daqui; criatura angélica que, à força da austeridade, julga poder reparar todas as estroinices
do marido; creio que me dissestes que estudastes para ser padre.
- Certamente.
- Pois bem, deveis ter aprendido a rezar a missa.
- Faço-o como um arcebispo.
- Ó meu caro e bom amigo! - prossegue Gabriel lançando-se ao pescoço de Rodin - são
dez horas agora; por Deus, vesti meu hábito, esperai soar a décima primeira hora; então
celebrai a missa, suplico-vos; nosso irmão sacristão é um bom diabo, e nunca nos trairá;
àqueles que julgarem não me reconhecer, dir-lhes-emos que é um novo monge, quanto aos
outros, os deixaremos em erro; correrei ao encontro de Renoult, esse velhaco, darei cabo dele
ou recuperarei meu dinheiro, estando de volta em duas horas.  O senhor me aguardará,
ordenará que grelhem os linguados, preparem os ovos e busquem o vinho; na volta,
almoçaremos, e a caça... sim, meu amigo, a caça creio que há de ser boa dessa vez: segundo
se disse, viu-se pelas redondezas um animal de chifres, por Deus!  Quero que o agarremos,
ainda que tenhamos de nos defender de vinte processos do senhor da região!
- Vosso plano é bom - diz Rodin - e, para vos fazer um favor, não há, decerto, nada que
eu não faça; contudo, não haveria pecado nisso?
- Quanto a pecados, meu amigo, nada direi; haveria algum, talvez, em executar-se mal a
coisa; porém, ao fazer isso sem que se esteja investido de poderes para tanto, tudo o que
dissentes e nada são a mesma coisa.  Acreditai em mim; sou casuísta, não há em tal conduta o
que se possa chamar pecado venial.
- Mas seria preciso repetir a liturgia?
- E como não?  Essas palavras são virtuosas apenas em nossa boca, mas também esta é
virtuosa em nós... reparai, meu amigo, que se eu pronunciasse tais palavras deitado em cima
de vossa mulher, ainda assim eu havia de metamorfosear em deus o templo onde sacrificais...
Não, não, meu caro; só nós possuímos a virtude da transubstanciação; pronunciaríeis vinte
mil vezes as palavras, e nunca faríeis descer algo dos céus; ademais, bem amiúde conosco a
cerimônia fracassa por completo; e, aqui, é a fé que faz tudo; com um pouco de fé
transportaríamos montanhas, vós sabeis, Jesus Cristo o disse, mas quem não tem fé nada faz...
                                                           
*
 Antiga moeda francesa. (N. dos T.)



eu, por exemplo, se nas vezes em que realizo a cerimônia penso mais nas moças ou nas
mulheres da assembléia do que no diabo dessa folha de pão que revolvo em meus dedos,
acreditais que faço algo acontecer?  Seria mais fácil eu crer no Alcorão que enfiar isso na
minha cabeça. Vossa missa será, portanto, quase tão boa quanto a minha; assim, meu caro,
agi sem escrúpulo, e, sobretudo, tende coragem.
- Pelos céus, - diz Rodin - é que tenho uma fome devoradora!  Ainda faltam duas horas
para o almoço!
- E o que vos impede de comer um pouco?  Aqui tendes alguma coisa.
- E a tal missa que é preciso celebrar?
- Por Deus!  O que há de mal nisso?  Acreditais que Deus se há de macular mais caindo
numa barriga cheia em vez de numa vazia?  O diabo me carregue se não é a mesma coisa a
comida estar em cima ou embaixo!  Meu caro, se eu dissesse em Roma todas as vezes que
almoço antes de celebrar minha missa, passaria minha vida na estrada.  Além disso, não sois
padre, nossas regras não vos podem constranger; ireis tão-somente dar certa imagem da
missa, não ireis celebrá-Ia; conseqüentemente, podereis fazer tudo o que quiserdes antes ou
depois, inclusive beijar vossa mulher, caso ela aqui estivesse; não se trata de agir como eu;
não é celebrar, nem consumar o sacrifício.
- Prossigamos - diz Rodin - hei de fazê-lo, Podeis ficar tranqüilo.
- Bem - diz Gabriel, dando uma escapadela, depois de fazer boas recomendações do
amigo ao sacristão... - contai comigo, meu caro; antes de duas horas estarei aqui - e,
satisfeito, o monge vai embora.
Não é difícil imaginar que ele chega apressado à casa da mulher do magistrado; que ela
se admira de vê-lo, julgando-o em companhia de seu marido; que ela lhe pergunta a razão de
visita tão imprevista.
- Apressemo-nos, minha cara - diz o monge, esbaforido - apressemo-nos!  Temos para
nós apenas um instante... um copo de vinho, e mãos à obra!
- Mas, e quanto a meu marido?
- Ele celebra a missa.
- Celebra a missa?
- Pelo sangue de Cristo, sim, mimosa - responde o carmelita, atirando a sra.  Rodin ao
leito - sim, alma pura, fiz de seu marido um padre, e, enquanto o farsante celebra um mistério
divino, apressemo-nos em levar a cabo um profano...
O monge era vigoroso; a uma mulher, era difícil opor-se-lhe quando ele a agarrava: suas
razões, por sinal, eram tão convincentes... ele se põe a persuadir a sra.  Rodin, e, não se
cansando de fazê-lo a uma jovem lasciva de vinte e oito anos, com um temperamento típico
da gente de Provença, repete algumas vezes suas demonstrações.
- Mas, meu anjo - diz, enfim, a beldade, perfeitamente persuadida - sabeis que se esgota
o tempo... devemos nos separar: se nossos prazeres devem durar apenas o tempo de uma
missa, talvez ele já esteja há muito no ite missa est.
- Não, não, minha querida - diz o carmelita, apresentando outro argumento à sra.  Rodin -
, deixai estar, meu coração, temos todo o tempo do mundo!  Uma vez mais, minha cara
amiga, uma vez mais! Esses noviços não vão tão rápido quanto nós... uma vez mais, vos
peço!  Apostaria que o corno ainda não ergueu a hóstia consagrada.
Todavia, mister foi que se despedissem, não sem promessas de se reverem; tracejaram
novos ardis, e Gabriel foi encontrar-se com Rodin; este havia celebrado a missa tão bem
quanto um bispo.
- Apenas o quod aures - diz ele - embaraçou-me um pouco; eu queria comer em vez de
beber, mas o sacristão fez com que eu me recompusesse; e quanto aos cem écus, padre?
- Recuperei-os, meu filho; o patife quis resistir, peguei de um forcado, dei-lhe umas
pauladas, juro-vos, na cabeça e noutras partes.
Entretanto, a diversão termina; nossos dois amigos vão à caça e, ao regressar, Rodin
conta à sua mulher o favor que prestou a Gabriel.


- Celebrei a missa - dizia o grande tolo, rindo com todas as forças - sim, pelo corpo de
Cristo! Eu celebrava a missa como um verdadeiro vigário, enquanto nosso amigo media as
espáduas de Renoult com um forcado... Ele dava com a vara; que dizeis disso, minha vida? 
Colocava galhos na fronte; ah! boa e querida mãezinha! como essa história é engraçada, e
como os cornos me fazem rir!  E vós, minha amiga, o que fazíeis enquanto eu celebrava a
missa?
- Ah! meu amigo - responde a mulher - parecia inspiração dos céus!  Observai de que
modo nos ocupavam de todo, a um e a outro, as coisas do céu, sem que disso suspeitássemos;
enquanto celebráveis a missa, eu entoava essa bela oração que a Virgem dirige a Gabriel
quando este fora anunciar-lhe que ela ficaria grávida pela intervenção do Espírito Santo. 
Assim seja, meu amigo!  Seremos salvos, com toda certeza, enquanto ações tão boas nos
ocuparem a ambos ao mesmo tempo.














































O marido


que recebeu uma lição

Um homem já na decadência pensou em se casar embora até aquele momento tivesse
passado sem mulher, e é possível que a coisa mais tola que fez, de acordo com os seus
sentimentos, tenha sido unir-se a uma jovem de dezoito anos, com o rosto mais atraente do
mundo e com a cintura não menos proveitosa.  Bernac - esse era o seu nome -, fazia tolice
ainda maior desposando uma mulher, porquanto se exercitava o menos possível nos prazeres
que concede o himeneu, e muito faltava para que as manias por que trocava os castos e
delicados prazeres dos laços conjugais agradassem a uma jovem do porte da srta.  Lurcie,
pois assim se chamava a infeliz a quem Bernac acabava de participar seu destino.  Desde a
primeira noite de núpcias, ele relatou suas preferências à jovem esposa, após tê-la feito jurar
nada revelar aos pais dela; tratava-se assim diz o célebre Montesquieu - de procedimento
ignominioso que leva de volta à infância: a jovem mulher, na postura de uma menina que
merece um corretivo, se prestava então por quinze ou vinte minutos, mais ou menos, aos
caprichos bestiais do velho esposo, e era à vista dessa cena que ele conseguia experimentar a
deliciosa embriaguez do prazer que todo homem mais bem organizado que Bernac decerto
teria desejado sentir apenas nos braços encantadores de Lurcie.  A experiência pareceu um
pouco dura àquela moça delicada, bela, educada no conforto mas longe do pedantismo;
entretanto, como lhe houvessem recomendado ser submissa, julgou tratar-se aquilo de hábito
comum aos esposos, e talvez até mesmo Bernac tivesse contribuído para que pensasse assim,
e ela se submeteu de modo mais honesto possível à depravação do seu sátiro; todos os dias
era a mesma coisa e, com freqüência, até duas vezes em vez de uma.  Ao cabo de dois anos, a
srta.  Lurcie, que continuamos a chamar sempre por esse nome, de vez que na ocasião se
achava tão virgem quanto no primeiro dia de suas núpcias, perdeu o pai e a mãe, e com eles a
esperança de fazer abrandar seus sofrimentos, como começava a figurar já havia algum
tempo.  Essa perda só fez tornar Bernac mais audacioso, e se mantivera dentro de alguns
limites, por respeito aos pais de sua mulher enquanto vivos, não demonstrou mais nenhuma
moderação tão logo ela os perdeu e ele percebeu-a incapaz de quem a pudesse vingar.  O que
parecia de início apenas um divertimento, tornou-se pouco a pouco um verdadeiro tormento;
essa srta.  Lurcie não podia mais suportar isso, seu coração se exasperava, e ela sonhava o
tempo todo com vingança.  Via pouquíssimas pessoas; o marido a isolava tanto quanto
possível.  Apesar de todas as admoestações de Bernac, o primo dela, o cavalheiro d'Aldour,
não deixara em absoluto de ver sua parenta; esse jovem tinha um belo rosto e não era sem
interesse que teimava em visitar a prima; como fosse bastante conhecido de toda a gente, o
ciumento, temendo que escarnecessem dele, não ousava muito afastar-se de sua casa... A srta. 
Lurcie deitara os olhos nesse parente para se libertar da escravidão na qual vivia: ouvia
diariamente as belas palavras do primo, e, por fim, revelou-se por completo a ele, tudo lhe
confessando.
- Vingai-me desse homem vil - disse-lhe -, e fazei isso por meio de uma cena que o
impressione o bastante para ele próprio jamais ousar falar dela a alguém: o dia em que
obtiverdes êxito há de ser o dia de vossa glória; apenas a esse preço serei vossa.
Encantado, d'Aldour tudo promete e só se empenha para o sucesso de uma aventura que
vai lhe assegurar tão belos monumentos.  Quando tudo está pronto:
- Senhor - diz ele um dia a Bernac -, tenho a honra de ser muito íntimo de vós, e em vós
confio o bastante para não deixar de vos participar o matrimônio secreto que acabo de
contrair.
- Um matrimônio secreto? - diz Bernac, encantado de se ver livre do rival que o fazia
tremer.
- Sim, senhor!  Acabo de me unir ao destino de uma esposa encantadora, e amanhã é o
dia em que ela me deve tornar feliz; confesso que se trata de uma moça sem bens; mas o que
importa isso se o que tenho basta aos dois?  Caso-me, é verdade, com uma família inteira,
quatro irmãs que vivem juntas, porém, como me apraz a companhia delas, para mim é apenas


uma felicidade a mais... Muito me alegraria, senhor - continua o jovem -, se minha prima e
vós me désseis amanhã a honra de vir ao menos ao banquete de núpcias.
- Senhor, saio muito pouco, e minha mulher menos ainda; vivemos ambos num grande
retiro; ela está contente assim, e eu não a incomodo absolutamente.
- Conheço vossas preferências, senhor - retruca d'Aldour -, e respondo-vos que sereis
servido a contento... amo a solidão tanto quanto vós e, por sinal, tenho razões de discrição,
como já disse: é na campanha, faz um belo dia, tudo vos convida e dou-vos minha palavra de
honra que estaremos absolutamente sozinhos.
Lurcie a propósito deixa entrever certo desejo; seu marido não ousa contrariá-la diante
de d'Aldour, e combinam o passeio.
- Devíeis querer tal coisa - diz o homem, irritado no momento em que se vê a sós com
sua mulher -, bem sabeis que absolutamente não me preocupo com tudo isso; saberei como
dar fim a todos esses vossos desejos, e previno-vos de que em pouco tempo planejo isolar-
vos numa de minhas terras, onde não vereis ninguém mais além de mim.
E como o pretexto, com ou sem fundamento, acrescentasse muito aos atrativos das cenas
luxuriosas às quais Bernac inventava planos quando lhe faltava o realismo, aproveitou a
oportunidade, fez Lurcie passar ao seu quarto e lhe disse:
- Iremos... sim, eu prometi, mas pagareis caro pelo desejo que demonstrastes...
A infeliz, acreditando estar próxima do desfecho, suporta tudo sem se queixar.
- Fazei o que vos aprouver, senhor - diz ela humildemente -, vós me concedestes uma
graça, sou-vos muito grata.
Tanta doçura, tanta resignação teria desarmado qualquer um que não tivesse um coração
tornado empedernido pelos vícios como o do libertino Bernac, mas nada é capaz de o deter;
satisfaz-se, dorme tranqüilo; no dia seguinte, d'Aldour, conforme o combinado, vem buscar o
casal e partem.
- Vereis - diz o jovem primo de Lurcie, entrando com o marido e a mulher numa casa
completamente isolada -, vereis que isso não tem lá muito jeito de uma festa popular; nenhum
coche, nenhum lacaio, já vos disse; estamos completamente sozinhos.
Entretanto, quatro mulheres altas de uns trinta anos, fortes, vigorosas e de cinco pés e
meio de altura cada uma, avançam sobre a escadaria e vêm receber o sr. e a sra.  Bernac da
maneira mais honesta.
- Eis minha mulher, senhor - diz d'Aldour, apresentando uma delas -, e estas três aqui são
suas irmãs; casamo-nos esta manhã ao alvorecer, em Paris, e os esperamos para celebrar as
bodas.
Tudo se passa segundo as leis da mútua cortesia; depois de algum tempo de reunião no
salão, onde Bernac se convence, para grande surpresa sua, que ele se encontra tão só quanto o
pôde desejar, um lacaio anuncia o almoço, e sentam-se à mesa.  Nada mais descontraído que
a refeição, as quatro pretensas irmãs muito acostumadas aos repentes, trouxeram à mesa toda
a vivacidade e todo o bom humor possíveis, mas como a decência não é esquecida um minuto
sequer, Bernac, enganado até o fim, crê-se na melhor companhia do mundo; todavia, Lurcie
encantada de ver o seu tirano numa situação difícil, divertia-se com seu primo, e, decidida em
desespero de causa a renunciar enfim a uma continência que não lhe trouxera até aquele
momento senão tristezas e lágrimas, bebia com ele o champanhe, inundando-o com os mais
ternos olhares; nossas heroínas, que tinham de buscar forças, consagravam-se igualmente à
libação, e Bernac, motivado, ainda sem conceber senão uma alegria simples em tais
circunstâncias, não se poupava mais do que as outras pessoas.  Entretanto, como era mister
não perder a razão, d'Aldour interrompe a tempo e propõe passar ao café.
- Por Deus, meu primo - diz ele, assim que Bernac se encontra afetado -, consenti em vir
visitar minha casa; sei que sois homem de bom gosto; eu a comprei e a mobiliei
propositadamente para meu casamento, mas temo ter feito um mau negócio; dir-me-eis vossa
opinião, por favor.
- De bom grado - diz Bernac -, ninguém como eu entende mais dessas coisas, e estimarei
tudo a mais ou menos dez luíses de diferença, garanto.


D'Aldour lança-se sobre as escadas dando a mão a rua bela prima, posicionam Bernac no
meio das quatro irmãs, e penetram nessa ordem num apartamento muito escuro e muito
afastado, absolutamente ao extremo da casa.
- É aqui a câmara nupcial - diz d'Aldour ao velho ciumento -, vedes essa cama, meu
primo; eis  onde a esposa vai deixar de ser virgem; ela já não arde de desejos tempo demais?
Era o sinal: no mesmo instante, nossas quatro malandras saltam sobre Bernac, armadas
cada uma de um punhado de varas; retiram-lhe as calças, duas delas o imobilizam, e as outras
duas se alternam para fustigá-lo e enquanto o molestam vigorosamente:
- Meu caro primo - exclama d'Aldour -, não vos disse ontem que seríeis servido a
contento?  Não imaginei nada melhor para agradar-vos do que devolver-vos o que dais todos
os dias a essa encantadora mulher; vós não sois bastante bárbaro para fazer-lhe uma coisa que
não gostaríeis de receber; assim, orgulho-me de fazer-vos minha corte; falta ainda uma
circunstância, portanto, à cerimônia; minha prima, segundo dizem, embora há muito esteja ao
vosso lado, ainda é tão virgem como se vós tivésseis vos casado apenas ontem; tal abandono
de vossa parte provém unicamente da ignorância, seguramente; garanto que é por que não
sabeis como proceder... vou mostrar-vos, meu amigo.
Ao dizer isso, tendo ao fundo uma agradável música, o homem fogoso deita sua prima na
cama e a torna mulher aos olhos de seu indigno esposo... Só nesse momento termina a
cerimônia.
- Senhor - diz d'Aldour a Bernac ao descer do altar -, achareis a lição talvez um pouco
severa, mas admiti que o ultraje a que submetíeis vossa esposa era, pelo menos, igual; não
sou, nem quero ser, amante de vossa mulher; ei-la, devolvo-a, mas vos aconselho a
comportar-vos doravante de maneira mais honesta com ela, caso contrário, ela ainda
encontraria em mim um vingador que vos pouparia ainda menos.
- Senhora - diz Bernac furioso -, na verdade esse procedimento...
- É o que vós merecestes - responde Lurcie mas se ele vos desagrada, entretanto, tendes
toda a liberdade de expressá-lo; exporemos cada um nossas razões, e veremos de qual dos
dois rirá o povo.
Bernac, confuso, reconhece seus erros, não inventa mais sofismas para legitimá-los,
lança-se aos joelhos de sua mulher para rogar seu perdão: Lurcie, terna e generosa, o levanta
e abraça, ambos retornam a sua casa, e não sei que meios utilizou Bernac, mas desde esse dia,
nunca a capital viu casal mais unido, amigos mais ternos e esposos mais virtuosos.














A pudica
ou o encontro imprevisto

O sr.  Sernenval, que contava aproximadamente quarenta anos, e que possuía doze ou
quinze mil libras de renda que despendia de modo despreocupado em Paris, não se ocupando


mais do comércio do qual outrora fizera sua profissão, e se contentando, por sua total
distinção, com o título honorífico de burguês de Paris, com vistas ao Conselho municipal,
desposara havia poucos anos a filha de um dos seus antigos confrades, de mais ou menos
vinte e quatro anos.  Nada havia de tão viçoso, tão roliço, tão gorduchinho e branco quanto a
sra.  Sernenval: não fora ela feita como as Graças, mas era apetitosa como a mãe dos amores;
não tinha o porte de uma rainha, mas possuía tamanha volúpia no conjunto, olhos tão ternos e
cheios de langores, tão bonita boca, pescoço tão firme e torneado, e todo o resto do corpo tão
propício a causar o nascimento do desejo, que bem poucas mulheres belas havia em Paris às
quais se teria preferido.  Entretanto, a sra. Sernenval, com tão diversos encantos físicos, tinha
um defeito capital no espírito... uma pudicícia insuportável, uma devoção exagerada que ao
marido impossibilitava persuadi-la de aparecer em suas reuniões sociais.  Levando ao
extremo a beatice, muito raramente a sra.  Sernenval passaria uma noite inteira em
companhia do seu marido, e, mesmo nos momentos em que ela condescendia conceder-lhe
esse favor, era sempre com excessiva reserva, - uma camisola que jamais despia.  Uma
abertura artisticamente acrescentada ao pórtico do templo do hímen só permitia a entrada
com as cláusulas expressas de nenhuma apalpadela desonesta, e de nenhuma conjunção
carnal; ter-se-ia enfurecido a sra.  Sernenval, se se tivesse desejado ultrapassar os limites que
a modéstia dela impunha, e o marido que tentasse, talvez corresse o risco de não mais cair nas
boas graças dessa casta e virtuosa fêmea.  O sr. Sernenval ria-se de todas essas beatices, mas,
como adorasse a mulher, condescendia em respeitar-lhe as tibiezas; vez por outra, entretanto,
tentava aconselhá-la; provava-lhe, do modo mais claro, que não é passando a vida nas igrejas
ou junto aos padres que uma mulher honesta cumpre realmente os seus deveres, dentre os
quais os primeiros são os de sua casa, por força, negligenciados por uma devota; e que ela
haveria de honrar muito mais as imagens do Eterno, vivendo de uma maneira honesta no
mundo, do que indo trancafiar-se nos claustros; que havia infinitamente mais perigo em se
tratando dos modelos de Maria do que desses amigos verdadeiros dos quais ela recusava
ridiculamente a companhia.
- É preciso que eu vos conheça e que vos ame tanto quanto faço - acrescentava a isso o
sr.  Sernenval - para que não me inquiete convosco durante todas essas práticas religiosas.  
Quem me assegura que algumas vezes vós não vos esqueceis sobre o leito macio dos levitas,
em vez de ao pé dos altares de Deus?  Nada há de tão perigoso quanto todos esses padres
patifes; é sempre falando de Deus que seduzem nossas mulheres e filhas, e é sempre em seu
nome que eles nos desonram ou enganam.  Acreditai-me, cara amiga, possível é ser honesto
em qualquer lugar; nem na cela do bonzo, nem no nicho do ídolo, a virtude ergue seu templo,
mas no coração de uma mulher casta, e as companhias decentes que vos ofereço nada têm
que se alie ao culto que vós lhe deveis... Vós passais por uma de suas mais fiéis sectárias:
creio nisso; mas que prova possuo de que realmente mereceis tal reputação?  Eu acreditaria
bem mais se vos visse resistir a astuciosos ataques; não é a mulher que se coloca na condição
de nunca ser seduzida, cuja virtude é a que mais se pode apurar; mas a que está bastante
segura de si mesma para se expor a tudo sem nada temer.
Sobre isso a sra. Sernenval nada respondia, pois que, de fato, não havia resposta para
esse argumento, mas ela chorava - expediente comum das mulheres fracas, seduzidas ou
falsas - e seu marido não ousava prosseguir com a lição.
As coisas estavam nesse estado quando um antigo amigo de Sernenval, de nome
Desportes, chegou de Nancy para vê-lo, e para concluir, ao mesmo tempo, alguns negócios
que tinha na capital.  Desportes era um bon vivant, de idade semelhante à do seu amigo, e não
odiava nenhum dos prazeres dos quais a natureza benfazeja permitiu ao homem fazer uso
para esquecer os males com que o abate; ele não resiste absolutamente à oferta que lhe faz
Sernenval de hospedá-lo em sua casa, regozija-se com a satisfação de vê-lo, e surpreende-se
concomitantemente com a severidade de sua mulher, a qual, no momento em que toma
conhecimento desse estranho na casa, recusa-se absolutamente a aparecer, e nem ao menos
desce mais para as refeições.  Desportes crê incomodar, quer se hospedar alhures; Sernenval
o impede de fazê-lo, e confessa-lhe, enfim, todos os ridículos de sua terna mulher.


- Devemos perdoá-la, - dizia o marido crédulo ela compensa essas faltas com tantas
virtudes que acabou obtendo minha indulgência, e ouso te pedir a tua.
- Assim seja, - responde Desportes - desde que não seja nada pessoal.... esqueço tudo, e
os defeitos da mulher de quem estimo nunca serão, a meus olhos, senão qualidades
respeitáveis.
Sernenval abraça o amigo, e só conversam sobre prazeres.
Se a parvoíce de dois ou três ineptos que, há cinqüenta anos, administram em Paris o
negócio das mulheres públicas e, especialmente, a de um pulha espanhol que no último
reinado ganhava cem mil écus por ano na espécie de inquirição da qual se vai falar, se o
medíocre rigorismo dessas pessoas não tivesse estupidamente imaginado que uma das mais
belas célebres maneiras de conduzir o Estado, um dos meios mais seguros do governo, uma
das bases, em suma, da virtude, era ordenar essas criaturas a prestar conta exata da parte de
seu corpo com que se regala ao máximo o indivíduo que a corteja; se não tivesse imaginado
que, entre um homem que observa um seio, por exemplo, e outro que se ocupa de um quadril,
há decididamente a mesma diferença que entre um homem probo e um canalha, e que aquele
que se acha em um ou em outro desses casos (depende do que esteja em moda) deve
necessariamente ser o maior inimigo do Estado, sem essas desprezíveis vilanias, como já
disse; certo é que dois estimados burgueses, um dos quais tendo uma mulher beata, o outro
sendo solteiro, poderiam ir passar muito legitimamente uma hora ou duas entre as moças;
mas quanto a essas absurdas infâmias intimidando o prazer dos cidadãos, não ocorreu a
Sernenval fazer sequer com que Desportes vislumbrasse esse tipo de dissipação.  Este,
percebendo isso e não imaginando os motivos, perguntou ao amigo por que ele já lhe tendo
proposto todos os prazeres da capital, não lhe havia falado desse em absoluto.  Sernenval
objeta o estúpido inquérito, Desportes graceja sobre isso, e, não obstante as listas de m., os
relatórios de comissários, os depoimentos de oficiais de polícia e todos os outros ramos dessa
*
velhacaria estabelecidos pelo chefe quanto esse negócio dos prazeres do labrego de Lutécia ,

diz a seu amigo que ele queria, com efeito, jantar com prostitutas.
- Escuta, - respondeu Sernenval - concordo, inclusive te servirei de introdutor como
prova de meu modo filosófico de pensar sobre esse assunto, mas por uma delicadeza que
espero não ma censures, pelos sentimentos que devo, em resumo, à minha mulher e que não
está em mim dominar, permitirás que eu não partilhe de teus prazeres; eu os proporcionarei a
ti, e ficarei nisso.
Desportes zomba um instante de seu amigo, mas vendo-o decidido a não se deixar de
modo algum enveredar por esse caminho, a tudo consente, e partem.
A célebre S. J. foi a sacerdotisa no templo da qual Sernenval imaginou sacrificar seu
amigo.
- É de uma mulher segura que precisamos, diz Sernenval - de uma mulher honesta; esse
amigo, para o qual imploro vossos cuidados, está em Paris por pouco tempo apenas; ele não
gostaria de levar más recordações para sua província e lá arruinar vossa reputação; diga-nos
com franqueza se tendes o que ele precisa e o que desejais a fim de proporcionar-lhe o
deleite.
- Ouçam, - retoma S. J. - bem vejo a quem tenho a honra de me dirigir, não são pessoas
como vós que eu engano; vou, portanto, falar-vos como mulher honesta, e meus
procedimentos vos provarão que eu o sou.  Tenho o que vos interessa; trata-se apenas de
pagar o preço justo, é uma mulher encantadora, uma criatura que vos arrebatará assim que a
escutardes... é, enfim, o que denominamos um banquete de padre, e vós sabeis que a essas
pessoas sendo meus melhores clientes, não lhes dou o que tenho de pior... Faz três dias que o
bispo de M. por ela deu-me vinte luíses, o arcebispo de R. fê-la ganhar cinqüenta ontem e,
ainda nesta manhã, ela me valeu trinta do coadjutor de... Eu vô-la ofereço por dez, e isso, na
verdade, senhores, para merecer a honra de vossa estima; mas é preciso ser pontual no dia e
na hora, ela está sob o controle do marido, e de um marido ciumento que só tem olhos para
                                                           
*
 Cidade gaulesa sobre cujas ruínas edificou-se Paris. (N. dos T.)



ela; só podendo gozar instantes furtivos, é necessário não perder nem um minuto daqueles
que tivermos combinado...
Desportes regateou um pouco; nunca uma prostituta fez com que se lhe pagasse dez
luíses em toda a Lorena; quanto mais ele procurava baixar o preço, mais ela elogiava a
mercadoria; em resumo, ele acabou por concordar e, no dia seguinte, dez horas em ponto foi
a hora marcada para o encontro.  Sernenval, não desejando de modo algum entrar a meias
nesse divertimento, não concordou com um jantar, em troca do qual haviam combinado essas
horas de prazer de Desportes, muito satisfeito por resolver tal assunto bem cedo para poder
ocupar-se o resto do dia de outros deveres mais essenciais.  Soa a hora; nossos dois amigos
chegam à casa de sua encantadora alcoviteira; um boudoir, onde reina apenas uma luz tênue e
luxuriosa, guarda a deusa, lugar onde Desportes vai oferecer em sacrifício.
- Felizardo filho do amor, - diz-lhe Sernenval, empurrando-o para o santuário - voa para
os braços voluptuosos que a ti se estendem, e só depois me vem falar de teus prazeres;
regozijar-me-ei por tua felicidade, e minha alegria será ainda mais pura porque não serei
absolutamente invejoso.
Nossa catecúmena aparece; três horas inteiras mal bastam à sua homenagem; ele retorna,
enfim, para assegurar a seu amigo que em sua vida nada viu de semelhante, e que a própria
mãe dos amores não lhe teria proporcionado tantos prazeres.
- Ela é, portanto, deliciosa - diz Sernenval, meio inflamado.
- Deliciosa?  Ah, não encontraria expressão que te pudesse reproduzir o que ela é, e
mesmo agora que a visão deve esvanecer-se, sinto que não há pincel capaz de pintar as
torrentes das delícias que me inundaram.  Ela acrescenta às graças que recebeu da natureza
essa arte tão sensual que lhes confere validade; conhece um certo tempero, possui no gozo
tão real ardor que ainda me encontro inebriado... Oh! meu amigo, experimenta, rogo-te, por
mais habituado que estejas às belezas de Paris, estou bem seguro de que me confessarás que
nunca alguma outra valeu, a teus olhos, o preço desta aqui.
Sernenval, sempre firme, contudo emocionado por certa curiosidade, pede a S. J. para
que faça passar essa moça diante dele, no momento em que sair do aposento... Ela consente,
os dois amigos mantêm-se de pé para a poder observar mais, e a princesa passa com altivez...
- Pelos céus, - Sernenval transtorna-se quando reconhece sua mulher - é ela... é essa
pudica que, não ousando descer dos seus aposentos por pudor diante de um amigo de seu
esposo, tem a impudência de vir se prostituir em tal casa.
- Miserável! exclama, furioso...
Mas é em vão que tenta se lançar sobre essa pérfida criatura; ela o reconhecera bem no
momento em que foi vista, e já ia longe da casa.  Sernenval, num estado difícil de expressar,
quer incriminar S. J.; esta se desculpa por sua ignorância, ela assegura Sernenval que há mais
de dez anos, isto é, bem anteriormente ao casamento desse infortunado, essa jovem criatura
participa de encontros em sua casa.
- A celerada!, - exclama o infeliz esposo, a quem o amigo tenta, em vão, consolar... - mas
não, que isso termine! o desprezo é tudo que lhe devo; que ela seja para sempre alvo do meu,
e que eu tenha aprendido a lição, por meio dessa cruel prova, que nunca é segundo a máscara
hipócrita das mulheres que se as deve tentar julgar.
Sernenval retornou a sua casa; porém, não mais encontrou sua prostituta: ela já tomara
seu rumo, e ele não se incomodou; seu amigo, não mais podendo suportar sua presença
depois do acontecido, despediu-se dele no dia seguinte, e o infortunado Sernenval, isolado,
com vergonha e cheio de dor, escreveu um in-quarto contra as esposas hipócritas, o qual não
corrigiu em absoluto as mulheres, e que os homens jamais leram.

















































Há lugar para dois


Uma belíssima burguesa da rua Saint-Honoré, de aproximadamente vinte e dois anos,
gorduchinha e roliça, carnes as mais viçosas e apetitosas, todas as formas modelares ainda
que um pouco cheias, e que acrescentava a tão fartos encantos presença de espírito,
vivacidade, e gosto o mais aguçado por todos os prazeres que lhe proibiam as rigorosas leis
do himeneu, decidira, havia quase um ano, arranjar dois ajudantes para seu marido que, sendo
velho e feio, a ela não somente desagradava muito, como também cumpria mal, se não
raramente, os deveres que, talvez, com um pouco mais de desempenho, poderiam acalmar a
exigente Dolmène - assim se chamava nossa bela burguesa.  Nada mais bem combinado do
que os encontros marcados com esses dois amantes: Des-Roues, jovem militar, ficava


normalmente das quatro às cinco horas da tarde e das cinco e meia às sete chegava
Dolbreuse, jovem negociante com o rosto mais bonito que se pode ver.  Era impossível fixar
outros momentos; eram os únicos em que a sra.  Dolmène estava tranqüila: de manhã, era
preciso estar na loja e, à tarde, também tinha de aparecer por lá algumas vezes, ou então o
marido voltava, e deviam falar de seus negócios.  Por sinal, a sra.  Dolmène havia
confidenciado a uma de suas amigas que ela gostava muito que os momentos de prazer se
sucedessem assim muito próximos um do outro: a chama da imaginação não se apagava, ela
assegurava; desse modo, nada mais temo do que passar de um prazer a outro; não era difícil
retomar a ação, pois a sra.  Dolmène era uma criatura encantadora que calculava ao máximo
todas as sensações do amor; pouquíssimas mulheres conheciam-nas como ela própria e, em
virtude dos seus talentos, reconhecera que, depois de muito meditar, dois amantes valiam
muito mais do que um; com respeito à reputação, era quase a mesma coisa, um encobria o
outro; poderiam se equivocar, poderia ser sempre o mesmo a entrar e sair várias vezes
durante o dia, e com relação ao prazer, que diferença! A sra.  Dolmène, que temia em
particular a gravidez, bem segura de que seu marido jamais com ela cometeria a loucura de
lhe arruinar a cintura, havia igualmente imaginado que, com dois amantes, havia muito
menos risco, quanto ao que temia, do que com um, porque, dizia ela, na condição,de
excelente anatomista, dois frutos se destruíam mutuamente.
Certo dia a ordem fixada nos encontros veio a se alterar, e nossos dois amantes, que
nunca se tinham visto, conheceram-se de maneira engraçada, conforme mostraremos.  Des-
Roues foi o primeiro, mas chegara muito tarde, e como se o diabo tivesse se intrometido,
Dolbreuse, que era o segundo, chegou um pouco mais cedo.
O leitor inteligente percebe de imediato que, da combinação desses dois pequenos erros,
deveria acontecer, infelizmente, um encontro infalível: e assim sucedeu.  Porém,
mencionaremos como isso se deu e, se possível, ocupemo-nos desse assunto com toda
decência e moderação que tal assunto já por si muito licencioso, exige.
Por obra de um capricho bastante bizarro - mas tão comum entre os homens - nosso
jovem militar, cansado do papel de amante, quis, por uns momentos, representar o da amante;
em lugar de ser amorosamente abraçado por sua divindade, quis, por sua vez, abraçá-la: em
resumo, o que está embaixo, coloca-o em cima, e, por essa inversão de posição, inclinada
sobre o altar onde normalmente se oferecia o sacrifício, era sra.  Dolmène que, nua como a
Vênus calipígia, e encontrando-se estendida sobre seu amante, apresentava, diante da porta
do quarto onde se celebravam os mistérios, o que os gregos adoravam com devoção na
estátua que acabamos de mencionar, essa parte mui bela que, em suma - sem sair à procura de
exemplos tão remotos - encontra tantos adoradores em Paris. Tal era a atitude quando
Dolbreuse, acostumado a entrar sem dificuldade, chega cantarolando, e vê por um ângulo o
que uma mulher verdadeiramente honesta não deve, segundo dizem, jamais mostrar.
O que teria causado grande prazer a muitas pessoas fez com que Dolbreuse recuasse.
- O que vejo? - exclamou - ... traidora... é isso que me reservas?
A sra.  Dolmène que, naquele momento, se encontrava numa dessas crises em que uma
mulher age infinitamente melhor do que raciocina, resolve mostrar-se audaciosa:
- Que diabo tens tu, - diz ela ao segundo Adônis - sem deixar de se entregar ao outro -
não vejo nisso nada que te cause muito pesar; não nos perturbes, meu amigo, e contenta-te
com o que te resta; como bem podes notar, há lugar para dois.
Dolbreuse, não conseguindo deixar de rir-se do sangue-frio de sua amante, pensou que o
mais simples era seguir o conselho dela, não se fez de rogado, e dizem que os três lucraram
com isso.








































Enganai-me sempre assim

No mundo há poucos seres tão libertinos quanto o cardeal de.... do qual, considerando-se que
ainda seja homem saudável e vigoroso, permiti-me guardar o nome em segredo.  Sua eminência tem
um acordo feito em Roma com uma dessas mulheres cuja profissão oficiosa é fornecer aos devassos
objetos necessários ao alimento de suas paixões; todas as manhãs ela leva até ele uma jovem de no
máximo treze a catorze anos, a qual monsenhor só usufrui da maneira inconveniente com que os
italianos não raro se deliciam, de modo que a vestal, saindo das mãos de Sua Grandeza tão virgem
quanto antes, possa, uma segunda vez, ser vendida como nova a algum libertino mais decente.  A
matrona, totalmente a par das máximas do cardeal, não encontrando, certo dia, a seu alcance, o objeto
cotidiano o qual era obrigação sua fornecer, imaginou travestir como uma menina um belíssimo
menino do coro da igreja do chefe dos apóstolos; colocaram-lhe uma peruca, uma touca, saiotes, e
todo o aparato falso que se devia impor ao santo homem de Deus.  Todavia, não se lhe pôde


conferir o que realmente ter-lhe-ia assegurado semelhança total com o sexo que ele imitava;
mas essa circunstância muito pouco embaraçava a alcoviteira... - Ele não pôs as mãos lá
nestes dias, - dizia àquela dentre suas companheiras que a ajudava na trapaça ele só visitará,
com toda a certeza, o que assemelha essa criança a todas as meninas do universo; assim, nada
devemos temer...

A mãezinha se equivocara; decerto ignorava que um cardeal italiano era homem de tato
muito delicado, e gosto apurado o bastante para se enganar em semelhantes coisas; chega a
vítima, o grande padre a imola, mas ao estremecer pela terceira vez:
- Per Dio santo, - exclama o homem de Deus - sono ingannato, questo bambino è
ragazzo, mai non fu putana!
E ele verifica... Contudo, nada acontecendo de muito embaraçoso para um habitante da
santa cidade nesse lance aventuroso, sua eminência prossegue, dizendo, talvez, como esse
camponês a quem se serviu trufas como batatas: Enganai-me sempre assim.  Mas quando a
operação terminou:
- Senhora, - diz ele à aia - não vos censuro por vossa confusão.
- Monsenhor, desculpai-me.
- Como vos disse, não vos censuro, mas quando isso acontecer-vos de novo, não deixai
de advertir-me, porque... o que eu não vir no primeiro momento, verei neste aqui.
























O esposo complacente



Toda a França sabia que o príncipe de Bauffremont tinha mais ou menos as mesmas preferências
do cardeal de quem acabo de falar.  Haviam dado a ele em matrimônio uma mocinha assaz
inexperiente, e que, segundo era costume, só foi instruída às vésperas.
- Sem mais explicações, - diz a mãe - pois que a decência me impede de ocupar-me de certos
pormenores, tenho uma única coisa a recomendar-vos, minha filha; desconfiai das primeiras propostas
que vosso marido vos fizer, e dizei-lhe, veemente: Não, senhor, não é por aí que se aborda uma
mulher honesta; em qualquer outro lugar que vos agrade, mas, certamente, aí não...
Vão ao leito e, por uma norma do decoro e da honestidade sem margem para dúvida, o príncipe,
querendo fazer as coisas conforme com os costumes, ao menos pela primeira vez, oferece à sua
mulher apenas os castos prazeres do himeneu: mas a jovem bem educada, lembrando de sua
lição:


- Por quem me tomais, senhor? - diz-lhe - pensais que eu consentiria essas coisas?  Em
qualquer lugar que vos agrade, mas, certamente, aí não...
- Mas senhora...
- Não, senhor, inútil insistirdes, nunca me fareis mudar de opinião.
- Pois bem, senhora, devo contentar-vos, - diz o príncipe apropriando-se de seus altares
preferidos - eu ficaria bem zangado se dissessem que alguma vez eu quis vos desagradar.
E venham nos dizer agora que não é necessário instruir as moças quanto às obrigações
delas, um dia, para com seus maridos!



































O talião


 Um bom burguês da picardia, talvez descendente de um desses ilustres trovadores das
margens do Oise ou do Somme, e cuja vida entorpecida, acabara de ser retirada às trevas
havia dez ou doze anos por um grande escritor do século; um bom e honesto burguês, eu
dizia, habitava a cidade de Saint-Quentin, tão célebre pelos grandes homens que deu à
literatura, e o fazia honradamente, ele, a mulher e uma prima em terceiro grau, religiosa em
um convento dessa cidade.  A prima em terceiro grau era uma moreninha de olhos vivos,
rosto bonito e olhar leviano, nariz arrebitado e cintura esbelta; estava ela aflita aos vinte e
dois anos e religiosa havia quatro; irmã Petronille era seu nome; tinha, além disso, bela voz, e
muito mais temperamento que religião.  Quanto ao sr.  Esclaponville - assim se chamava
nosso burguês - era ele um gorducho bom e alegre, de mais ou menos vinte e oito anos,
amando mormente a prima mas nem tanto a sra.  Esclaponville, pois que já fazia dez anos que
com ela dormia e um hábito de dez anos é bem prejudicial ao fogo do himeneu.  A sra.  
Esclaponville - pois é preciso pintar, por quem passaríamos se não pintássemos num século


em que só se precisa de quadros, em que nem mesmo uma tragédia seria aceita se os
negociantes de telas não encontrassem nela ao menos seis temas retratados - a sra.  
Esclaponville, eu dizia, era uma loura algo insípida, porém branquíssima, com bonitos olhos,
bem gordinha, e com essas grandes bochechas comumente denominadas no mundo de bom
gozo.
 Até o presente momento, a sra.  Esclaponville ignorava que existisse um modo de se
vingar de um esposo infiel; casta como sua mãe, que vivera oitenta e três anos com o mesmo
homem sem o trair, ainda era bastante ingênua, muito cheia de candura para sequer suspeitar
desse crime horrendo que os casuístas denominaram adultério, e que os hedonistas que tudo
edulcoram, chamaram simplesmente galanteria; mas uma mulher enganada logo recebe de
seu ressentimento conselhos de vingança, e como ninguém gosta de ser ludibriado, nada há
que não faça, tão logo seja possível, para não ser motivo de censura.  A sra.  Esclaponville
percebeu, enfim, que seu caro esposo visitava muito amiúde a prima em terceiro grau: o
demônio do ciúme apodera-se de sua alma, ela espreita, informa-se e acaba por descobrir e
poucas coisas podem ser constatadas em Saint-Quentin como o romance de seu esposo com a
irmã Petronille.  Segura de seu ato, a sra. Esclaponville declara enfim a seu marido que a
conduta que ele segue trespassa-lhe a alma, que, por seu próprio comportamento, não merecia
tais atitudes, e suplica-lhe que abandone seus erros.
 - Meus erros - responde fleumático o esposo ignoras, portanto, que me salvo, minha cara
amiga, ao dormir com minha prima religiosa? - Purifica-se a alma em tão santo romance;
trata-se de uma identificação com o Ser supremo; é incorporar em si o Espírito Santo: não há
nenhum pecado, minha cara, quando estão envolvidas pessoas consagradas a Deus; elas
depuram tudo o que se faz com elas e visitá-las, em suma, é abrir caminho à beatitude celeste.
 A Sra.  Esclaponville, bem descontente com o insucesso da repreensão, não diz palavra,
mas em seu íntimo jura encontrar recursos para tornar sua eloqüência mais persuasiva... nisso
tudo, diabo é que as mulheres têm um meio sempre à disposição: por menos bonitas, basta
que se manifestem para que acorram vingadores de toda parte.
 Havia na cidade certo vigário de paróquia denominado abade du Bosquet, grande
folgazão de uns trinta anos, cortejando todas as mulheres e fazendo da testa de todos os
esposos de Saint-Quentin, verdadeira floresta.  A sra.  Esclaponville fez contato com o
vigário; insensivelmente, o vigário também fez contato com a sra.  Esclaponville, e os dois
acabaram por se conhecer enfim de modo tão completo que teriam podido pintar-se
mutuamente dos pés à cabeça sem que fosse possível se equivocarem quanto ao corpo.  Ao
cabo de um mês, todos vieram felicitar o pobre Esclaponville, que se gabava de ser o único a
escapar aos temíveis galanteios do vigário, e de que, em Saint-Quentin, era ele a única fronte
que esse patife ainda não maculara.
 - Isso não pode ser - diz Esclaponville aos que lhe falavam -, minha mulher é casta como
uma Lucrécia; poderiam me dizer cem vezes, que eu não acreditaria.
 - Vem, pois - diz-lhe um de seus amigos -, vem que eu te convenço por meio de teus
próprios olhos, e veremos em seguida se duvidarás.
 Esclaponville deixa-se levar, e seu amigo o conduz a meia légua da cidade, num local
solitário onde o Somme, estreitado nas margens entre duas sebes frescas e cobertas de flores,
oferece agradável banho aos habitantes da cidade; porém, como o encontro houvesse sido
marcado numa hora em que normalmente as pessoas não se banham, nosso pobre marido tem
a tristeza de ver chegar, um após o outro, sua honesta mulher e seu rival, sem que ninguém os
possa interromper.
 - Pois bem - diz o amigo a Esclaponville sentes coceira na testa?
 - Ainda não - diz o burguês, esfregando-a contudo, é possível que, involuntariamente, ela
venha até aqui para se confessar.
 - Permaneçamos, pois, até o desfecho, - diz o amigo...
 Não demorou muito: mal havia chegado à deliciosa sombra da sebe olente, o abade du
Bosquet desabotoa tudo o que impede as apalpadelas voluptuosas com que sonha, e põe-se no


dever de trabalhar santamente para reunir, é possível que pela trigésima vez, o bom e honesto
Esclaponville aos outros esposos da cidade.
 - Pois bem, acreditas agora? - Diz o amigo.
 - Retornemos - diz asperamente Esclaponville tendo sido obrigado a acreditar, eu bem
poderia matar esse maldito padre, e acabariam fazendo com que eu pagasse mais do que ele
vale; retomemos, meu amigo, e guarda segredo, eu te peço.
 Esclaponville torna a casa todo confuso, e, pouco depois, sua benigna esposa vem se
apresentar para jantar ao lado de tão casta pessoa.
 - Um momento, queridinha - diz o burguês furioso - desde minha infância jurei a meu pai
nunca jantar com putas.
 - Com putas - responde complacentemente a sra.  Esclaponville -, meu amigo, esse
comentário me surpreende; que motivo tens para tal censura?
 - Como, sem-vergonha, que motivo tenho para te censurar?  Que foste fazer esta tarde no
banho com o nosso vigário?
 - Oh, meu Deus - responde a doce mulher -, é apenas isso, meu filho? É apenas isso que
tens a me dizer?
 - Como, por Deus, é apenas isso...
 - Mas, meu amigo, eu segui teus conselhos; não me dissestes que nada se arrisca quando
se dorme com pessoas da Igreja?  Que depuramos nossa alma em tão santo romance?  Que tal
ato equivalia a identificar-se ao Ser supremo, fazer entrar o Espírito Santo em si, e abrir
caminho, em resumo, à beatitude celeste... pois bem, meu filho, só fiz o que me disseste; sou,
portanto, uma santa, não uma meretriz!  Ah!  Respondo-te que se a alguma dessas boas almas
de Deus é dado um meio de abrir caminho, como disseste, à beatitude celeste, esse meio é
certamente o sr. vigário, pois nunca vi uma chave tão grande!














O professor filósofo

De todas as ciências que se inculca na cabeça de uma criança quando se trabalha em sua
educação, os mistérios do cristianismo, ainda que uma das mais sublimes matérias dessa
educação, sem dúvida não são, entretanto, aquelas que se introjetam com mais facilidade no
seu jovem espírito.  Persuadir, por exemplo, um jovem de catorze ou quinze anos de que
Deus pai e Deus filho são apenas um, de que o filho é consubstancial com respeito ao pai e
que o pai o é com respeito ao filho, etc, tudo isso, por mais necessário à felicidade da vida, é,
contudo, mais difícil de fazer entender do que a álgebra, e quando queremos obter êxito,
somos obrigados a empregar certos procedimentos físicos, certas explicações concretas que,
por mais que desproporcionais, facultam, todavia, a um jovem, compreensão do objeto
misterioso.
Ninguém estava mais profundamente afeito a esse método do que o abade Du Parquet,
preceptor do jovem conde de Nerceuil, de mais ou menos quinze anos e com o mais belo
rosto que é possível ver.


- Senhor abade, - dizia diariamente o pequeno conde a seu professor - na verdade, a
consubstanciação é algo que está além das minhas forças; é-me absolutamente impossível
compreender que duas pessoas possam formar uma só: explicai-me esse mistério, rogo-vos,
ou pelo menos colocai-o a meu alcance.
O honesto abade, orgulhoso de obter êxito em sua educação, contente de poder
proporcionar ao aluno tudo o que poderia fazer dele, um dia, uma pessoa de bem, imaginou
um meio bastante agradável de dirimir as dificuldades que embaraçavam o conde, e esse
meio, tomado à natureza, devia necessariamente surtir efeito. Mandou que buscassem em sua
casa uma jovem de treze a catorze anos, e, tendo instruído bem a mimosa, fez com que se
unisse a seu jovem aluno.
- Pois bem, - disse-lhe o abade - agora, meu amigo, concebas o mistério da
consubstanciação: compreendes com menos dificuldade que é possível que duas pessoas
constituam uma só?
- Oh! meu Deus, sim, senhor abade, - diz o encantador energúmeno - agora compreendo
tudo com uma facilidade surpreendente; não me admira esse mistério constituir, segundo se
diz, toda a alegria das pessoas celestiais, pois é bem agradável quando se é dois a divertir-se
em fazer um só.
Dias depois, o pequeno conde pediu ao professor que lhe desse outra aula, porque,
conforme afirmava, algo havia ainda “no mistério” que ele não compreendia muito bem, e
que só poderia ser explicado celebrando-o uma vez mais, assim como já o fizera.  O
complacente abade, a quem tal cena diverte tanto quanto a seu aluno, manda trazer de volta a
jovem, e a lição recomeça, mas desta vez, o abade particularmente emocionado com a
deliciosa visão que lhe apresentava o belo pequeno de Nerceuil consubstanciando-se com sua
companheira, não pôde evitar colocar-se como o terceiro na explicação da parábola
evangélica, e as belezas por que suas mãos haviam de deslizar para tanto acabaram
inflamando-o totalmente.
- Parece-me que vai demasiado rápido, - diz Du Parquet, agarrando os quadris do
pequeno conde muita elasticidade nos movimentos, de onde resulta que a conjunção, não
sendo mais tão íntima, apresenta bem menos a imagem do mistério que se procura aqui
demonstrar... Se fixássemos, sim... dessa maneira, diz o velhaco, devolvendo a seu aluno o
que este empresta à jovem.
- Ah!  Oh! meu Deus, o senhor me faz mal - diz o jovem - mas essa cerimônia parece-me
inútil; o que ela me acrescenta com relação ao mistério?
- Por Deus! - diz o abade, balbuciando de prazer - não vês, caro amigo, que te ensino
tudo ao mesmo tempo? É a trindade, meu filho... é a trindade que hoje te explico; mais cinco
ou seis lições iguais a esta e serás doutor na Sorbornne.



O corno de si próprio,

ou a reconciliação imprevista


Um dos maiores defeitos das pessoas mal-educadas é expor uma porção de indiscrições,
maledicências ou calúnias sobre tudo o que respira, e isso diante das pessoas que não
conhecem; não se poderia imaginar a quantidade de casos que se tornaram o fruto de
semelhantes falatórios: qual é o homem honesto, com efeito, que ouvirá falar mal do que o
interessa sem dar reparo aos malefícios a que o expõe?  Não se faz com que esse princípio de
sábia moderação penetre o bastante a educação dos jovens, não se lhes ensina o suficiente a
conhecer o mundo, os nomes, as qualidades, as atinências das pessoas com as quais é-lhes
dado conviver; coloca-se, no lugar desse princípio, mil asneiras que só servem para a
conspurcação, no exato momento em que se alcança a idade da razão.  Sempre faz lembrar


capuchinhos ensinando, a todo instante, beatices, hipocrisias ou inutilidades, e nunca uma
boa máxima de moral.  Ide mais longe, interrogar um jovem sobre seus verdadeiros deveres
para com a sociedade, perguntai-lhe o que deve a si mesmo e aos outros, de que modo é
preciso conduzir-se a fim de ser feliz: ele vos responderá que se lhe ensinou a ir à missa e
rezar litanias, mas que nada compreende do que quereis dizer-lhe; que se lhe ensinou a
dançar, a cantar, mas não a viver entre os homens.  O caso que se tomou a conseqüência do
inconveniente que descrevemos não foi sério a ponto de causar derramamento de sangue,
disso não resultando senão um gracejo; e é para esmiuçá-la que iremos abusar alguns minutos
da paciência de nossos leitores.
O sr. Raneville, de cinqüenta anos aproximadamente, tinha um desses temperamentos
fleumáticos que não deixam de exercer, em absoluto, certo encanto no mundo: rindo pouco,
mas fazendo os outros rirem muito; pelas tiradas de seu espírito mordaz e pela maneira
frívola com que as proferia, amiúde encontrava, unicamente por seu silêncio, ou pelas
expressões burlescas de sua fisionomia taciturna, o segredo de divertir mil vezes mais os
círculos em que era admitido do que esses tagarelas maçadores sem vivacidade, monótonos,
tendo sempre um conto a vos narrar do qual riem uma hora antes, sem ser bastante felizes
para alegrar sequer um minuto quantos o escutam.  Tinha ele um importante emprego no
departamento do fisco, e, para se consolar de um péssimo casamento outrora contraído em
Orléans, após ter por lá deixado sua mulher desonesta, em Paris despendia sem preocupação
vinte ou vinte e cinco mil libras de renda com uma mulher belíssima a quem sustentava, e
com alguns amigos tão amáveis quanto ele.
A amante do sr.  Raneville não era propriamente uma moça, mas uma mulher casada e,
por conseqüência, mais ardente, pois, mesmo que se queira negar, essa pitada de sal do
adultério acrescenta com freqüência grande sabor a um gozo; era ela muito bonita, com seus
trinta anos, e tinha o mais belo corpo que é possível achar; separada do marido, medíocre e
desagradável, viera da província em busca de fortuna em Paris, e não demorara muito para a
encontrar. Raneville, naturalmente libertino, à espreita de todo bom pedaço, não deixara
escapar este e, havia três anos, por mui honesto tratamento, fineza e dinheiro, fazia com que
essa jovem esquecesse todas as decepções que outrora aprouve ao himeneu disseminar em
seu caminho.  Ambos, tendo aproximadamente o mesmo destino, consolavam-se de maneira
mútua, e se certificavam dessa grande verdade que, entretanto, não corrige ninguém, segundo
a qual só há tantos casamentos maus e, em conseqüência, tanta infelicidade no mundo,
porque pais avaros ou imbecis unem mais as fortunas do que os temperamentos: pois - dizia
amiúde Raneville à sua amante -, é bem certo que se o acaso nos tivesse unido, em vez de nos
dar, a vós, um marido tirano e ridículo, e a mim, uma mulher prostituta, as rosas teriam
nascido aos nossos pés em vez dos espinhos que por tanto tempo colhemos.
Um acontecimento corriqueiro, do qual é bastante desnecessário falar, levou certo dia o
sr.  Raneville a essa aldeia lamacenta e insalubre denominada Versalhes, onde reis feitos para
serem adorados em sua capital parecem fugir à presença de súditos que os procuram, onde a
ambição, a avareza, a vingança, e o orgulho levam diariamente uma multidão de infelizes nas
asas do tormento a sacrificar ao ídolo do momento, onde a elite da nobreza da França, que
poderia desempenhar um papel importante em suas terras, consente vir se humilhar em
antecâmaras, adular de modo vil porteiros, ou mendigar humildemente uma refeição pior do
que a sua para alguns desses indivíduos que a sorte arranca, por uns momentos, às nuvens do
esquecimento, a fim de os recolocar lá pouco depois.
Tendo resolvido seus negócios, o sr. Raneville monta num desses coches da corte
denominados “penicos”, e, lá se encontra fortuitamente em companhia de um certo Dutour,
muito tagarela, bem gordo e pesado, grande trocista, também empregado no departamento do
fisco, só que em Orléans, sua terra, a qual, conforme disse há pouco, é igualmente a do sr.  
Raneville.  Trava-se a conversa, Raneville sempre lacônico e sem jamais se revelar, já sabe o
nome, o sobrenome, a cidade e a ocupação do seu companheiro de estrada, antes de dizer
sequer uma palavra.  Tendo informado esses detalhes, o sr.  Dutour adentra um pouco mais
naqueles da sociedade.


- Vós estivestes em Orléans, senhor - diz Dutour -, segundo me parece, acabais de
afirmar isso.
- Em tempos passados, lá residi alguns meses.
- E conhecestes, dizei-me, certa sra.  Raneville, uma das maiores p. do mundo que já
moraram em Orléans?
- Sra.  Raneville, uma mulher bastante bonita.
- Exato.
- Sim, eu a conheci em certa ocasião.
Pois bem, eu vos direi confidencialmente que a possuí, por três dias, como se faz com
uma p. Com toda certeza, se há um marido cornudo, pode-se dizer que ele é esse pobre
Raneville.
- E o conheceis?
- Não, só de nome; trata-se de pessoa má, que se arruína em Paris, segundo dizem, com
moças e devassos como ele.
- Nada vos direi sobre ele; não o conheço, mas compadeço-me dos maridos cornos; não o
sois, por acaso, senhor?
- A qual dos dois vos referis, ao marido ou ao corno?
- A um e outro; essas coisas estão de tal forma ligadas hoje em dia que na verdade é
muito difícil diferenciá-las.
- Sou casado, senhor; tive a infelicidade de desposar uma mulher que comigo não se
satisfez; e como seu temperamento me conviesse muito pouco, nós nos separamos
amigavelmente, ela preferiu vir para Paris partilhar da solidão de uma de suas parentas,
religiosa do convento de Sainte-Aure, e reside nessa casa, de onde me envia notícias suas de
vez em quando, porém de maneira nenhuma a vejo.
- Ela é devota?
- Não; mas talvez eu tivesse preferido isso.
- Ah! eu vos compreendo.  E vós não tivestes sequer a curiosidade de vos informar sobre
sua saúde, nesta vossa estada a que ora vos obrigam vossos negócios em Paris?
- Em verdade, não, não gosto dos conventos: amigo dos prazeres, da alegria, criado para
os entretenimentos, festejado nos círculos sociais, não ouso em absoluto ir me arriscar num
*
locutório há pelo menos seis meses de vapores. 

- Mas uma mulher...
- ... É um indivíduo que pode interessar quando dela nos servimos, mas da qual devemos
saber nos separar quando sérias razões dela nos afastam.
- Há severidade no que dizeis.
- Absolutamente... sabedoria... é o tom do presente, é a linguagem da razão; devemos
adotá-la, ou passar por idiotas.
- Isso supõe algum desvio em vossa mulher; explicai-me isso: desvio de natureza, de
complacência ou de conduta.
- Um pouco de tudo... um pouco de tudo, senhor, mas deixemos isso, rogo-vos, e
retornemos a essa cara sra. Raneville: por Deus, não compreendo que, tendo estado em
Orléans, vós não tenhais vos divertido com essa criatura... pois todos a possuíram.
- Todos, não, pois bem vedes que eu não a possuí: não gosto de mulheres casadas.
- E sem querer ser por demais curioso: com quem passais vosso tempo, senhor, eu vos
pergunto?
- Primeiramente com meus negócios, e, em seguida, com uma criatura bastante bonita,
com quem janto de vez em quando.
- Não sois casado, senhor?
- Sou.
- E vossa mulher?


                                                         

  
*
 Na medicina antiga (séculos XVII e XVIII), suposto mal-estar provocado por emanações de corpos de pessoas em determinado estado de

espírito


- Ela se encontra na província, e deixo-a lá, assim como deixais a vossa em Sainte-Aure.
- Casado, senhor, casado, e seríeis da confraria?  Por favor, respondei-me.
- Não vos disse que esposo e corno são sinônimos?  A depravação dos costumes, o
luxo... tantas coisas que fazem uma mulher decair.
- Oh! é bem verdade, senhor, é bem verdade.
- Respondeis como homem sábio.
- Não, absolutamente; se bem que, senhor, uma belíssima pessoa vos consola à ausência
da esposa abandonada.
- Sim, na verdade, uma belíssima pessoa; quero que a conheceis.
- Senhor, eu ficaria muito honrado.
- Oh! nada de cerimônias, senhor; eis-nos ao nosso destino; deixo-vos livre esta noite,
por causa de vossos negócios, mas amanhã sem falta espero-vos para jantar no endereço que
vos entrego.
E Raneville tem o cuidado de dar um endereço falso, no qual pronto adverte, a fim de
que os que vierem perguntar por ele chamando-o por este nome o possam encontrar com
facilidade.
No dia seguinte, o sr. Dutour por razão nenhuma falta ao encontro, e, tendo sido tomadas
as precauções, de modo a fazer com que, com um nome fictício, a ele fosse dado encontrar
Raneville na residência, ele entra sem dificuldade.  Aos primeiros cumprimentos, Dutour
parece inquieto por não vislumbrar ainda a divindade que espera ver.
- Homem impaciente - diz-lhe Raneville daqui vejo o que procuram vossos olhos...
prometi-vos uma bela mulher; já desejaríeis voltear em sua presença; acostumado a desonrar
a fronte dos maridos de Orléans, desejaríeis, estou bem certo disso, tratar da mesma forma os
amantes de Paris: aposto como estaríeis bem contente de me colocardes na mesma condição
desse infeliz Raneville, de quem ontem me falastes de modo tão divertido.
Dutour responde como homem galante, como pretensioso e, conseqüentemente, como
tolo, a conversação se torna divertida por uns instantes e Raneville, tomando o amigo pela
mão:
- Vinde - diz-lhe -, homem cruel!  Vinde ao próprio templo onde a divindade vos espera.
Dizendo isso, ele faz com que Dutour entre num gabinete luxurioso, onde a amante de
Raneville, preparada para o gracejo e, tendo a palavra, encontravase no mais elegante
déshabillé, sobre uma otomana de veludo, porém velada: nada ocultava a elegância e a
exuberância de seu porte, apenas era impossível ver-lhe o rosto.
- Eis uma pessoa belíssima - exclama Dutour mas por que me privar do prazer de
admirar suas feições, estamos aqui, portanto, no harém do grande Senhor?
- Não, não é preciso comentários; trata-se de pudor.
- Como, de pudor?
- Seguramente; acreditais que eu queira me limitar a vos mostrar somente o porte ou o
déshabillé de minha amante; meu triunfo seria completo se, ao retirar todos esses véus, eu
vos convencesse do quanto devo estar feliz pela posse de tão fartos encantos.  Como essa
jovem fosse singularmente modesta, enrubesceria com tais detalhes; ela bem quis concordar
com isso, mas sob a cláusula expressa de estar coberta.  Sabeis o que é o pudor e as
delicadezas das mulheres, sr.  Dutour; não é a um homem elegante com trajes da moda como
vós que se prescreveria acerca de tais coisas!
- Como, por Deus, ireis me mostrar?
- Tudo, já vos disse; ninguém tem menos ciúme do que eu; a felicidade que se
experimenta sozinho me parece insípida; só encontro satisfação junto à outra pessoa com
quem compartilho.
E para constatar suas máximas, Raneville começa por retirar um lenço de gaze que
revela nesse instante o mais belo pescoço que é possível deslumbrar... Dutour se inflama.
- E então - diz Raneville -, o que achais disso?
- São os atributos da própria Vênus.


- Acreditai: seios tão alvos e firmes são feitos para incendiar... tocai-os, meu camarada!
os olhos algumas vezes nos enganam; minha opinião é a de que, em matéria de volúpia, é
preciso valer-se de todos os sentidos.
Dutour estende a mão trêmula, apalpa, com êxtase, o mais belo seio do mundo, e não
deixa de se surpreender com a incrível complacência de seu amigo.
- Vamos, mais para baixo! - diz Raneville, levantando até o ventre uma saia leve de
tafetá, sem que nada se oponha a essa incursão - pois bem! o que dizeis . dessas coxas? 
Acreditais que o templo do amor possa ser sustentado por colunas mais belas do que essas?
E o caro Dutour, continuando a apalpar tudo o que Raneville lhe exibia:
- Patife! adivinho vossos pensamentos - continua o complacente amigo -, esse delicado
templo, que as próprias Graças cobriram de um musgo suave... ardeis com desejos de
entreabri-lo, não é verdade?  O que digo; com vontade de lá colher um beijo, isso sim.
E Dutour transtornado... balbuciando... não respondia mais senão pela violência das
sensações das quais seus olhos eram os instrumentos; encorajam-no... seus dedos libertinos
acariciam os pórticos do templo que a própria volúpia descerra a seus desejos: esse beijo
divino permitido, ele o dá, e por uma hora o saboreia.
- Amigo - diz ele -, não agüento mais! expulsai-me de vossa casa, ou permiti que eu siga
em frente.
- Como?  Em frente?  E para que diabo de lugar desejas ir, respondei-me?
- Pobre de mim; vós não me compreendeis de modo algum; estou inebriado de amor, não
posso mais me conter.
- E se essa mulher é feia?
- É impossível sê-lo com encantos tão divinos.
- Se ela é...
- Que ela seja tudo o que quiser, eu vos digo, meu caro; não posso mais resistir a isso.
- Segui em frente, portanto, terrível amigo, seguí; satisfazei-vos, pois que é preciso:
sereis pelo menos grato por minha complacência?
- Ah!  Terei a maior gratidão, sem dúvida.  E Dutour com a mão afastava delicadamente
o amigo, como que para deixá-lo a sós com essa mulher.
- Oh! para deixar-vos, não, não posso - diz Raneville -, mas sois, assim, tão escrupuloso
que não podeis vos contentar com minha presença?  Entre homens não se age absolutamente
desse modo: de resto, são minhas condições; ou diante de mim, ou nada.
- Fosse diante do diabo - diz Dutour, não se contendo mais e precipitando-se ao santuário
onde seu incenso vai se queimar -, se assim quereis, concordo com tudo...
- Pois bem - dizia de modo fleumático Raneville - as aparências vos enganaram, e as
delícias prometidas por tão diversos encantos são ilusórias ou reais... Ah! nunca, nunca vi
algo de tão voluptuoso.
- Mas esse maldito véu, amigo, esse véu pérfido: não me será permitido retirá-lo?
- Sim... no último momento, naquele momento tão deleitável, em que todos os nossos
sentidos, seduzidos pela embriaguez dos deuses, ela sabe nos tomar tão afortunados quanto
eles próprios, e amiúde bem superiores.  Essa surpresa dobrará vosso êxtase: ao encanto de
usufruir a própria Vênus, vós acrescentareis as inexprimíveis delícias de contemplar as
feições de Flore, e tudo isso se unindo a fim de aumentar vossa felicidade; mergulhareis com
bem mais facilidade nesse oceano de prazeres, onde o homem encontra com tanta satisfação o
consolo de sua existência... Vós me fareis um sinal...
- Oh! como podeis ver - diz Dutour -, sinto-me arrebatado neste momento.
- Sim, estou vendo; sois fogoso.
- Mas fogoso a um ponto... ó meu amigo! atinjo este instante celeste! arrancai, arrancai
esses véus, que eu contemple o próprio firmamento.
- Ei-lo - diz Raneville fazendo desaparecer o véu -, mas cuidado para não encontrardes
talvez, um Pouco perto desse paraíso o inferno!
- Oh! pelos céus - exclama Dutour, ao reconhe cer sua mulher - ... O quê?  Sois vós,
senhora?... senhor, que estranho gracejo! vós mereceríeis... essa celerada...


- Um momento, um momento, homem fogoso! sois vós que mereceis tudo; aprendei,
meu amigo, que é preciso ser um pouco mais cauto com as pessoas que não se conhece do
que o fostes comigo ontem.  Esse infeliz Raneville que haveis tratado tão mal em Orléans...
sou eu mesmo, senhor; como vedes, eu o retribuo a vós em Paris; de resto, aqui estais, bem
mais avançado do que poderíeis crer; pensáveis ter feito corno de mim e acabais de fazê-lo de
vós mesmo.
Dutour aprendeu a lição, estendeu a mão ao amigo, e concordou que recebera o que
havia merecido.
- Mas essa pérfida...
- Pois bem, ela não vos imita?  Qual é a lei bárbara que faz acorrentar desumanamente
esse sexo, concedendo-nos toda a liberdade? É ela eqüitativa?  E por que direito natural
encerrais vossa mulher em SainteAure, enquanto, em Paris e em Orléans, fazeis os maridos
cornos?  Meu amigo, isso não é justo, essa encantadora criatura, cujo valor não soubesses
reconhecer, veio em busca de outras conquistas: ela teve razão; encontrou-me; faço sua
felicidade; fazei a da sra. Raneville; concordo com isso, vivamos felizes os quatro, e que as
vítimas do destino não se tornem as dos homens.
Dutour achou que seu amigo tinha razão, mas por uma fatalidade inconcebível, tornou a
se apaixonar com a mão loucamente por sua mulher; Raneville, por mais cáustico, tinha a
alma bela demais para resistir aos pedidos de Dutour quanto a recuperar sua mulher, a jovem
concordou com isso, e houve nesse acontecimento único, sem dúvida, um exemplo bem
singular dos golpes do destino e dos caprichos do amor.






Augustine de Villeblanche,

ou o estratagema do amor

- De todos os desvios da natureza, o que mais causou reflexão, que pareceu mais
estranho a esses pseudofilósofos que tudo querem analisar sem nunca compreender algo -,
dizia a uma de suas melhores amigas, certo dia, a srta. Villeblanche, da qual falaremos
oportunamente daqui a pouco -, é esse gosto bizarro que mulheres de certa compleição, ou de
certo temperamento, desenvolveram com respeito a pessoas do seu sexo.  Embora bem
anteriormente à imortal Safo, e depois dela, não tivesse existido uma única região do
universo, sequer uma cidade, que não nos tivesse dado mulheres nascidas desse tipo de
capricho, e de acordo com provas tão cabais, fosse mais razoável acusar a natureza de
bizarria do que a essas mulheres de crime contra a natureza, jamais, entretanto, deixou-se de
as censurar, e, sem a autoridade imperiosa que sempre teve o nosso sexo, quem sabe se algum
*
Cujas, algum Bartole, algum Luís IX, teriam imaginado criar leis de fagots , contra essas

criaturas, do modo como ousaram promulgar contra os homens que, formando o mesmo
gênero singular, e por tão boas razões, sem dúvida, imaginaram, entre eles, poder se bastar a
si próprios, e pensaram que a mistura dos sexos, muito útil à propagação, podia muito bem
não ter essa mesma importância para os prazeres. - Queira Deus que não tomemos nenhum
partido sobre isso... não é, minha cara? - continuava a bela Augustine de Villeblanche,
lançando a essa amiga beijos que pareciam, entretanto, no mínimo, suspeitos, mas em vez de
fagots, em vez de desprezo, em vez de sarcasmos - essas armas de todos e embotadas em
nossos dias -, não seria infinitamente mais simples, num gesto totalmente indiferente à
sociedade, tão ao agrado de Deus, e, talvez mais útil à natureza do que se imagina, que se
permitisse a cada qual agir segundo a própria vontade ... ? O que se pode temer dessa
                                                           
*
 Fagot tem por tradução feixe de lenha; nesta passagem, Sade alude à fogueira onde ardiam os hereges. (N. dos T.)



depravação?  Aos olhos de todo ser verdadeiramente sábio, parecerá que ela é capaz de
exercer influência sobre maiores depravações, mas nunca me convencerão de que ela pode
acarretar depravações perigosas... Pelos céus! receia-se que os caprichos dessas pessoas, de
um ou de outro sexo, sejam a causa do fim do mundo; que ponham em risco a valiosa espécie
humana, e que seu pretenso crime a aniquile, por não se entregarem à sua multiplicação?  
Refleti bem sobre isso, e vereis que todas essas perdas quiméricas são inteiramente
indiferentes à natureza; que não apenas ela não as condena em absoluto, mas também prova a
nós, de mil maneiras, que as quer e deseja; e, contrariassem-na essas perdas, ela haveria de as
tolerar em mil casos; permitiria ela, fosse-lhe a progenitura tão essencial, que uma mulher a
isso não pudesse servir senão durante um terço de sua vida, e que, ao sair-lhe das mãos
metade dos seres que ela gera, estes tivessem inclinações contrárias a essa progênie, exigida,
todavia, por ela?  Sendo mais preciso: ela permite que as espécies se multipliquem, mas não
exige isso de modo algum, e, bem segura de que haverá sempre mais indivíduos do que lhe é
necessário, longe está de contrariar Os pendores de quantos não se entregam à reprodução, e
que se recusam a conformar-se a isso.  Ah! deixemos que aja essa boa mãe; convençamo-nos
de que imensos são os seus recursos, de que nada do que fazemos a ultraja e o crime que
atentaria contra as suas leis jamais nos há de sujar as mãos.
A srta.  Augustine de Villeblanche, de cuja parte da lógica acabamos de tomar
conhecimento, tendo se tornado senhora de seus atos aos vinte anos de idade, podendo dispor
de trinta mil libras de renda, decidira-se, por gosto, nunca se casar; de boa origem, sem ser
ilustre, era ela filha de um homem que enriquecera nas índias, que a tivera como única filha,
e morrera sem nunca a poder convencer de se casar.  Não devemos dissimulá-lo; essa
repugnância que Augustine manifestava pelo casamento em muito se devia a esse tipo de
capricho do qual ela acabara de fazer apologia; seja por conselhos, por educação, seja por
disposição de órgão ou pelo calor do seu sangue (nascera em Madras), seja por inspiração da
natureza, enfim, seja por tudo o que se quiser, a srta.  Villeblanche detestava os homens, e de
todo se entregava àquilo que ouvidos castos entenderão com o termo safismo; não encontrava
volúpia senão nas pessoas de seu sexo, e só com as Graças se compensava do desprezo que
votava ao Amor.
Para os homens, Augustine era um verdadeiro desperdício; alta, podendo servir de
modelo a um pintor, com cabelos castanhos os mais belos, nariz um pouco aquilino, dentes
extraordinários, e olhos de uma expressão, de uma vivacidade! pele tão fina, tão branca, o
conjunto, numa palavra, evocando tão ardente lascívia... que bem certo era que vê-la assim,
perfeita para dar amor e tão determinada a não o receber de maneira alguma, poderia arrancar
a muitos homens infinitas zombarias contra determinado gosto, por sinal, muito simples, mas
*
privando, contudo, os altares de Pafo de uma das criaturas do universo mais apropriadas a

servi-los, - vê-la assim por força havia de animar os sectários dos templos de Vênus.  A srta.
Villeblanche ria prazerosamente dessas censuras todas, dessas maledicências, e por isso não
se dava menos a seus caprichos.
- A maior de todas as loucuras - dizia ela - é enrubescer por causa de nossas inclinações
naturais; e zombar de qualquer indivíduo que possua gostos singulares é absolutamente tão
desumano quanto escarnecer de um homem ou de uma mulher saída zarolha ou coxa do seio
de sua mãe; mas convencer os tolos sobre esses princípios racionais é tentar impedir o
movimento dos astros.  Para o orgulho, há uma espécie de prazer em zombar dos defeitos que
se não tem, e essa satisfação é tão doce ao homem e particularmente aos néscios, que é muito
raro vê-los renunciar a tal comportamento, este, por sinal, fomenta a malvadez, as frívolas
palavras de espírito, os calembures vulgares, e, para a sociedade, isto é, para um grupo de
seres que o tédio reúne e a estupidez modifica, é tão doce falar duas ou três horas sem nada
dizer! tão delicioso brilhar às custas dos outros, e proclamar, estigmatizando um vício, que se
está bem longe de o possuir... é uma espécie de elogio que se faz tacitamente a si mesmo; por
esse preço é lícito inclusive associar-se aos outros, tracejar maquinações secretas a fim de
                                                           
*
 Antiga cidade da ilha de Chipre, célebre por seu templo de Afrodite (N.dos T.)



pisar no indivíduo cujo grande erro é não pensar como a maioria dos mortais; e a pessoa volta
para casa toda entufada devido à espirituosidade que não lhe faltou, embora com tal conduta
só se tenha demonstrado, essencialmente, pedantismo e estupidez.
Assim pensava a srta. Villeblanche; decidida de maneira muito segura a nunca se
reprimir, desdenhando as maledicências e bastante rica para manter-se a si própria acima de
sua reputação, visava epicurianamente a uma vida voluptuosa, e de maneira nenhuma a
beatices celestiais em que acreditava muito pouco, para não mencionar a idéia de uma
imortalidade, por demais quimérica aos seus sentidos; no centro de um pequeno círculo de
mulheres que pensavam como ela, a cara Augustine entregava-se inocentemente a todos os
prazeres que a deleitavam.  Tivera muitos pretendentes, mas todos haviam sido tão
maltratados, que quando já se estava prestes a se renunciar a tal conquista, um jovem de
nome Franville, de semelhante condição social, ao menos tão rico quanto ela, tendo se
apaixonado como louco, não apenas não se revoltou de maneira nenhuma com sua firmeza,
como também decidiu com muita seriedade não abandonar o posto enquanto ela não fosse
conquistada; comunicou o projeto a seus amigos, que dele zombaram; asseverou-lhes que
obteria êxito; eles o desafiaram a obtê-lo, e ele se lançou à empresa.  Franville, com dois anos
menos que a srta. Villeblanche, quase não tinha barba, mas boa estatura, e feições as mais
delicadas, e os cabelos mais bonitos do mundo; quando o trajavam de mulher, ficava tão bem
que sempre enganava os dois sexos, e recebia amiúde, fugindo ao assédio de uns, dos que
demonstravam segurança em sua ação, uma grande quantidade de declarações tão objetivas
que no mesmo dia seria capaz de se tornar o Antínoo de algum Adriano ou o Adônis de
alguma Psique. Foi com esse disfarce que Franville imaginou seduzir srta. Villeblanche;
veremos como procedeu.
Um dos maiores prazeres de Augustine era, durante o carnaval, vestir-se de homem, e
participar de todos os bailes com esse disfarce, tão análogo a suas inclinações; Franville, que
lhe mandava vigiar os passos, e que até aquele momento tivera o cuidado de revelar-se-lhe
bem pouco, soube, certa feita, que essa a quem adorava na mesma noite iria a um baile
organizado por associados do Ópera, onde todos os mascarados poderiam entrar, e que,
segundo costume dessa moça encantadora, ela se apresentaria como capitã dos dragões.  Ele
se disfarça de mulher, enfeita-se, veste-se com toda elegância e propriedade, carrega a
maquiagem, prescindindo da máscara, e, acompanhado por uma de suas irmãs, muito menos
bonita do que ele próprio, apresenta-se assim no baile, para onde a amável Augustine se
dirigia em busca de aventura.
Menos de três voltas pelo salão bastaram para que Franville fosse distinguido pelos olhos
experientes de Augustine.
- Quem é aquela bela moça? - diz a srta.  Villeblanche a uma amiga que a acompanhava -
... creio nunca tê-la visto; como é possível que tão deliciosa criatura tenha, pois, nos
escapado?
Mal haviam sido pronunciadas essas palavras, e Augustine faz quanto pode para encetar
conversa com a falsa senhorita de Franville, que a princípio foge, inquieta-se, esquiva-se,
escapa, e tudo isso a fim de fazer com que a desejem com mais ardor; por fim, ela o aborda,
frases banais travam inicialmente a conversa a qual, a pouco e pouco, torna-se mais
interessante.
- Está fazendo um calor insuportável no salão diz a srta. Villeblanche -, deixemos nossas
companhias juntas, e tomemos um pouco de ar nesses aposentos onde nos divertimos e
refrescamos.
- Ah! senhor - diz Franville à srta. Villeblanche a qual ainda finge confundir com um
homem... - na verdade, não ouso fazer isso: estou aqui apenas com minha irmã, mas sei que
minha mãe deverá vir com o esposo que me foi destinado, e se ambos me vissem convosco,
seria uma grande confusão...
- Bem, bem, é preciso pôr-se ao abrigo de todo esse medo infantil... Qual a vossa idade,
meu anjo?
- Dezoito anos, senhor.


- Ah! digo-vos que aos dezoito já se deve ter adquirido o direito de fazer tudo o que se
quiser... vamos, vamos, acompanhai-me, e não tenhais nenhum medo... - E Franville se deixa
levar.
- É verdade, encantadora criatura - continua Augustine, conduzindo a pessoa a quem
ainda toma aposentos contíguos ao salão do baile... - é verdade, realmente vós vos unireis em
matrimônio... como lamento por vós! e quem é ele, essa pessoa a quem vos destinam? um
maçador, decerto... Ah, como será feliz, esse homem, e como eu gostaria de estar no lugar
dele!  Consentiríeis desposar-me a mim, por exemplo? dizei-me francamente, jovem celestial.
- Ai de mim! senhor, acaso não sabeis que, quando se é jovem, segue-se os impulsos do
coração?
- Pois bem; recusai-o, esse homem vil! tornar-nos-emos ambos mais íntimos, e, se
gostarmos... por que não nos unir-nos?  Não preciso, graças a Deus, de permissão nenhuma;
embora tenha só vinte anos, sou senhor de minha vida, e se pudésseis persuadir vossos pais
em meu favor, antes de oito dias talvez estivésseis, vós e eu, ligados pelos laços eternos.
Tagarelando, saíram do baile, e a astuta Augustine, que até lá não conduzia sua presa
para fugir ao perfeito amor, teve o cuidado de a conduzir a um aposento muito isolado, do
qual, por meio de acordos acertados com os organizadores do baile, ela sempre tinha o
cuidado de se fazer senhora.
- Oh Deus! - diz Franville, tão logo vê Augustine fechar a porta desse quarto e envolvê-
lo nos seus braços -, oh pelos céus!  Que desejais fazer?... O quê?  Convosco, frente a frente,
senhor, e num lugar tão retirado... deixai-me, deixai-me, rogo-vos! ou chamo agora mesmo
por socorro.
- Impedir-te-ei de fazê-lo, anjo divino - diz Augustine, apertando a bela boca contra os
lábios de Franville - grita agora, grita se podes, e o puro sopro de teu hálito de rosas abrasará
ainda mais cedo o meu coração.
Franville defendia-se com bastante tibieza: é difícil encolerizar-se muito quando se
recebe de maneira tão terna o primeiro beijo de quem se adora.  Augustine, encorajada,
investia com mais força, nisso pondo essa veemência que só com efeito conhecem as
mulheres deliciosas, arrebatadas por essa fantasia.  Em breve as mãos se desgarram; Franville
faz o papel da mulher que cede, igualmente deixa que suas mãos explorem o corpo.  Todas as
vestes são retiradas, e os dedos se dirigem quase ao mesmo tempo para onde cada um crê
encontrar o que lhe convém... Então, Franville muda imediatamente de papel:
- Oh! pelos céus - exclama ele -, o quê? Sois uma mulher...
- Horrível criatura - diz Augustine, pondo a mão em partes do corpo que não dão
margem à dúvida -, tanto trabalho para encontrar um mísero homem... é preciso ter azar
demais.
- Na verdade, não mais do que eu - diz FranviIle, recompondo-se, e dando mostras do
mais profundo desprezo -, uso esse disfarce para seduzir os homens; eu os amo, corro atrás
deles, e só encontro uma p...
- Oh, p.... não - diz Augustine, com rancor nunca o fui em minha vida; não é por se
detestar os homens que se pode ser tratada dessa maneira...
- Como, sois mulher, e detestais os homens?
- Sim, e isso pela mesma razão de serdes homem e detestardes mulheres.
- Um encontro singular - eis tudo o que se pode dizer.
- E para mim muito triste - acrescenta Augustine, revelando todos os sintomas de
descontentamento mais acentuado.
- Em verdade, senhorita, tal encontro é ainda mais fastidioso para mim - diz asperamente
Franville -, desonrado por três semanas: sabeis que em nossa ordem fazemos voto de nunca
tocar em mulheres?
- Parece-me que, sem se desonrar, é possível tocar numa como eu.
- Com efeito, minha bela - continua Franville não vejo grande motivo para a exceção, e
não compreendo que um vício para vós valha um mérito adicional.


- Um vício?  Mas caberia a vós censurar-me pelos meus, quando partilhais da mesma
infâmia?
- Escutai - diz Franville -, não continuemos discutindo; o melhor é nos separarmos e
nunca mais nos vermos.
E, dizendo isso, Franville prepara-se para abrir a porta.
- Um momento, um momento - diz Augustine impedindo-o de fazer isso -, ides espalhar
nossa aventura pelo mundo todo, aposto.
- Talvez venha a me divertir com isso.
- Que me importa, de resto, estou, graças a Deus, acima da maledicência; retirai-vos, e
dizei tudo o que vos aprouver... - e impedindo-o de sair mais uma vez - sabei - diz ela
sorrindo - que essa história é extraordinária... nós dois nos enganávamos.
- Ah! o erro é muito mais intolerável - diz Franville - a pessoas de meu gosto, do que a
pessoas do vosso... e esse vazio nos repugna...
- Por minha fé, meu caro!  Sabei que o que nos ofereceis desagrada ao menos tanto
quanto a vós!  Ora, o desencanto é igual em cada um, mas a aventura é muito engraçada; não
deixemos de concordar com isso.  Voltareis ao baile?
- Não sei.
- No que me diz respeito, não volto mais lá - diz Augustine - ... vós me fizestes
experimentar coisas... contrariedade... vou me deitar.
- Perfeito.
- Mas vejamos se sereis bastante cortês para dardes o braço até minha casa; minha
residência fica a dois passos daqui; não estou com minha carruagem; ireis me deixar aqui...
- Não, eu vos acompanharei de bom grado - diz Franville -, nossas inclinações não nos
impedem de sermos polidos... quereis minha mão?... ei-la.
- Só me sirvo dela porque não encontro coisa melhor, pelo menos.
- Ficai tranqüila; para mim, só vô-la ofereço por honestidade.
Chegam à porta da casa de Augustine, e Franville apresta-se a se despedir.
- Em verdade, sois delicioso - diz a srta. Villeblanche -, o quê? deixar-me-eis na rua?
- Com mil desculpas - diz Franville - ... eu não pretendia...
- Ah, como são rudes esses homens que não amam as mulheres!
- É que - diz Franville, dando, todavia, o braço à srta. Villeblanche até sua residência -,
vede, senhorita, eu gostaria de retornar bem rápido ao baile e nele tentar reparar minha
estupidez.
- Vossa estupidez?  Estais, pois, bem irritado por ter-me encontrado?
- Eu não disse isso; mas não é verdade que podíamos os dois ter um encontro
infinitamente melhor?
- Sim, tendes razão - diz Augustine, entrando enfim eu seu apartamento - tendes razão,
senhor, eu, sobretudo... pois temo que esse funesto encontro não me custe a felicidade de
minha vida.
- De que modo?  Não estais, Portanto, bem segura de vossos sentimentos?
- Ainda ontem estava.
- Ah! não sustentais vossas tácitas afirmações.
- Não sustento coisa alguma; vós me impacientais.
- Pois bem, eu me retiro, senhorita, me retiro... Deus me livre de vos incomodar por mais
tempo.
- Não! permanecer, ordeno-vos! seríeis capaz de vos esforçar a fim de obedecer a uma
mulher pelo menos uma vez em vossa vida?
- Nada há que eu não faça - diz Franville, sentando-se por complacência - já vos disse;
sou honesto.
- Sabeis que, na vossa, é muito decente ter gostos tão singulares?
- Oh! isso é muito diferente! no nosso caso, trata-se de discrição, pudor... até mesmo
orgulho, se quiserdes; medo de entregar-se a um sexo que nos seduz somente para subjugar-
nos... Entretanto, os sentidos não mentem, e encontramos alívio entre nós; conseguimos


ocultar-nos muito bem, e disso resulta um verniz de sabedoria que freqüentes vezes engana;
assim, a natureza se satisfaz, a decência é observada e os costumes não são ultrajados.
- Eis o que se costuma chamar um bom e belo sofisma; procedendo dessa maneira,
justificar-se-ia tudo; e o que dizeis em tudo isso que também não possamos alegar em favor
nosso?
- De maneira alguma! com preconceitos muito diferentes, não deveis ter medo que tais;
vosso triunfo está em nossa derrota... mais multiplicais vossas conquistas, mais acrescentais à
vossa glória, e não vos podeis abster dos sentimentos que em vós despertamos, senão pelo
vício ou pela depravação.
- Na verdade, creio que me hás de converter.
- Eu o desejaria.
- O que ganharíeis com isso, enquanto vós mesma continuaríeis em erro?
- É uma necessidade imposta pelo meu sexo, e, tal como as mulheres, fico bem contente
de trabalhar para elas.
- Se o milagre se realizasse, seus efeitos não seriam tão gerais quanto imaginais; eu só
desejaria me converter para uma única mulher para pelo menos... tentar.
- O que dizeis é justo.
- O que é bem certo é que há certo preconceito, acredito, a tomar partido antes de ter
experimentado tudo.
- Como? nunca tivestes uma mulher?
- Nunca; e vós... possuiríeis por acaso primícias tão seguras?
- Oh, primícias, não... as mulheres que nós vemos são tão hábeis e tão ciumentas que
nada nos permitem... mas nunca conheci um homem em minha vida.
- E fizestes um juramento?
- Sim, jamais quero ver um, ou, pelo menos tão singular quanto eu.
- Lamento não ter feito o mesmo voto.
- Não creio que seja possível ser mais impertinente...
E dizendo essas palavras, a srta. Villeblanche levanta-se e diz a Franville que ele pode se
retirar.  Nosso jovem amante, sempre frívolo, faz uma profunda reverência e se prepara para
sair.
- Retornais ao baile - diz-lhe secamente a srta. Villeblanche, observando-o com um
despeito aliado ao mais ardente amor.
- Mas sim, eu vos disse; é o que me parece.
- Pelo visto, não sois capaz do sacrifício que vos faço.
- Que sacrifício me haveis feito?
- Só voltei para casa a fim de nada mais ver depois de ter tido a infelicidade de vos
conhecer.
- Infelicidade?
- Sois vós que me forçais a empregar essa expressão; só de vós dependeria que eu
lançasse mão de uma bem diferente .
- E como haveríeis de conciliar isso com vossos gostos?
- O que não se abandona quando se ama!
- É verdade; mas ser-vos-ia impossível amar-me.
- Concordo com isso; se conservásseis hábitos tão detestáveis quanto esses que descobri
em vós.
- E se eu renunciasse a eles?
- No mesmo instante, havia de imolar os meus nos altares do amor... Ah! criatura
pérfida!, que essa confissão custe a minha glória, a qual acabas de arrancar-me - diz
Augustine em lágrimas -, deixando-se cair sobre uma poltrona.
- Da mais bonita boca do universo obtive a confissão mais lisonjeira que me seria dado
ouvir - diz Franville, lançando-se aos joelhos de Augustine - ... Ah! caro objeto de meu mais
terno amor! reconhecer meu ardil e condescender em não puni-lo de modo algum; é aos
vossos pés que vos imploro graça; permanecerei aqui até obter meu perdão.  Vedes próximo a


vós, senhorita, o amante mais constante e mais apaixonado; imaginei necessário esse
estratagema para sobrepujar um coração cujos obstáculos eu conhecia.  Obtive êxito, bela
Augustine?  Recusareis, ao amor sem máculas, o que haveis condescendido em dizer ao
amante culpado... culpado, eu... culpado do que haveis acreditado... ah! podíeis supor que
uma paixão impura pudesse existir na alma daquele que nunca ardeu de paixão senão por vós.
- Traidor, tu me enganastes... mas te perdôo... contudo, nada terás que me sacrificar,
pérfido; e meu orgulho sentir-se-á até mesmo lisonjeado por isso; pois bem, não importa;
quanto a mim, tudo te sacrifico... Está certo, renuncio com alegria para te satisfazer as
torpezas a que a vaidade nos arrasta quase tão amiúde quanto nossos gostos.  Sei que a
natureza acaba por triunfar, eu sufocava por desvios que agora abomino de todo meu coração;
não resistimos de modo nenhum a seu império; ela não nos criou senão para vós; não vos
formou senão para nós; sigamos as leis dela, é pelo intermédio do próprio amor que ela hoje
mos inspira; elas se tornarão para mim mais sagradas.  Eis minha mão, senhor; eu vos tenho
por homem de palavra, e feito para aspirar a mim.  Se eu por um instante fiz por merecer
perder vossa estima, por força de cuidados e ternura talvez venha a recuperar minhas faltas, e
forçar-vos-ei a reconhecer que aquelas da imaginação nem sempre degradam uma alma boa.
Franville, no cúmulo de seus votos, inundando de lágrimas de sua alegria as belas mãos
que as mantém coladas à sua boca, levanta-se e precipitando-se nos braços que se lhe abrem:
- Oh, dia mais feliz de minha vida - ele exclama existe algo de comparável a meu
triunfo?  Trago de volta ao seio das virtudes o coração em que vou reinar para sempre.
Franville beija mil vezes o divino objeto de seu amor e dele se separa; comunica, no dia
seguinte, sua felicidade a todos os seus amigos; a srta. Villeblanche era muito bom partido
para que seus pais lho recusassem; ele a desposa na mesma semana.  A ternura, a confiança, a
discrição mais estrita, a modéstia mais severa, coroaram seu casamento, e se tornando o mais
feliz dos homens, foi bastante hábil para fazer da mais libertina das moças a mais sábia e a
mais virtuosa das mulheres.